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Rui Nabeiro em entrevista ao jornal Expresso “Nasci numa terra pobre, por isso sou socialista”

Rui Nabeiro, empresário campomaiorense. Foto: Expresso NUNO BOTELHO
Entrevista: Jornal Expresso

Aos 84 anos e com a 4ª classe, Manuel Rui Azinhais Nabeiro é um exemplo do self made man. Militante do PS, o maior empresário português do café está no 12º lugar do ranking dos mais ricos. O comendador de Campo Maior recorda a sua vida, que começou na pobreza e no contrabando


O império de Rui Nabeiro começou a ser construído cedo. As suas raízes encontram-se na época em que via o tio Joaquim saltar a fronteira para fazer contrabando. Desde aí soube que queria estar ligado ao comércio. Nas páginas do livro da vida que agora abre, o Comendador, como é chamado em Campo Maior, relembra a infância de pobreza e os sacrifícios do pai, que o levaram a ser de esquerda. Duas vezes nomeado presidente de Câmara na ditadura, e eleito outras quatro pelo PS (de 1976 a 1985), fez da vila onde nasceu e de onde sempre recusou a sair uma terra próspera. Raramente diz que não a quem lhe pede ajuda e, apesar de considerar que a Delta continuará a ser o que é hoje, recusa a reforma. “Quero sentir o palpitar do coração”.

Lembra-se de quando bebeu o primeiro café a sério, que não fosse cevada nem chicória? 
A partir dos meus 14 ou 15 anos, até porque para o aprender a conhecer tem de se experimentar. Em nossa casa já havia um café diferente, o torrefacto que fabricávamos na altura.
Começou a beber café com ou sem açúcar? 
Nessa altura, confesso que era com açúcar.
E hoje? 
Não ponho nada. Nem no café nem no chá. Tenho um provador, mas sempre que entro na fábrica há um lote à minha espera para eu próprio fazer a prova. Para isso não posso pôr açúcar nem qualquer aditivo.
O açúcar e os doces faziam-no salivar quando era miúdo?
A nossa família era muito humilde e em casa não havia bolos. A minha mãe vinha do campo e nesses tempos quem era a pessoa do campo que fazia bolos? Só por altura do Natal e pouco mais.
Diz que a sua família era humilde. Pode acrescentar-se pobre? 
Os meus avós maternos viviam praticamente no sítio onde temos hoje a fábrica, mas numa barraquinha. Viviam os dois do campo. Os meus pais já tiveram uma mercearia proporcionada pelo patrão do meu pai, um lavrador e médico de quem foi motorista durante anos e anos. Chamava-se “Alimentação e Salsicharia Srª Maria Azinhais”. Os meus pais foram extraordinariamente eficazes no equilíbrio da vida da família e puderam proporcionar aos filhos a escola. Muitos não iam — e esses é que eram os verdadeiros pobres.
Os seus pais não tinham ido à escola? 
A minha mãe morreu analfabeta, mas era uma pessoa muito inteligente. O meu pai, Manuel, aprendeu a escrever o nome dele na tropa. Foi um oficial que o ajudou, para poder tirar a carta de condução e, assim que saísse da tropa, ir trabalhar para casa do tal médico, cunhado do oficial. Melhor ou pior, nós já tínhamos o nosso sapatinho, mas perto de nós havia muita gente descalça. O meu pai era um sacrificado em casa desse patrão. De noite ficava de guarda a um filho que tinha problemas do foro psiquiátrico, totalmente descontrolado. Havia semanas e meses que não víamos a sombra do meu pai; durante o dia estava com o patrão e à noite tinha aquela responsabilidade.
Fez a quarta classe. Teve pena de não ter continuado? 
Ainda hoje tenho. Na nossa terra só tínhamos os quatro anos da instrução primária. Se tivéssemos algumas condições teríamos de ir para Portalegre, Elvas ou Évora. Em casa chegámos a ser sete — cinco filhos mais os pais. Não havia hipóteses de continuar a estudar: nem o mais velho pôde e eu era só o terceiro. Ficámos todos com a quarta classe. Todos fomos bons na escola, mas depois tivemos de parar. As irmãs começaram a fazer um bocado de costura no lar. Mas nenhum de nós foi trabalhar para casa de alguém, nem para o campo. Na minha turma só houve um rapaz que foi para engenharia, em Coimbra, porque tinha lá uns tios professores a viver.

Provador. 
Sempre que chega à fábrica, Rui Nabeiro tem um lote de café à espera para ser provado. Foto: NUNO BOTELHO
Se lhe fosse dada a hipótese, que curso seguiria? 
Fui sempre um homem do comércio, mesmo sem ser comerciante. Quando me iniciei, foi sempre com a ambição do comércio, devido ao pequeno estabelecimento que os meus pais tinham. A indústria só veio a seguir.
Tem alguma recordação da Guerra Civil de Espanha? 
Tenho muitas, e não boas. Lembro-me das pessoas que eram capturadas na fronteira. Vinham, eram entregues, presas, e depois transportadas para Espanha, sabendo que iam para o suicídio [sic]. Durante a Guerra Civil, já tentava fazer comércio de produtos, porque havia racionamento de açúcar, arroz, massas, bacalhau. Como tínhamos um estabelecimento, adquiríamos e vendíamos a quem procurava e levava até à fronteira.
Lidou com alguns refugiados?
Nasci numa travessa que vai dar à Praça da República, onde está a Câmara Municipal. A esquadra da polícia estava ligada ao edifício da Câmara e nós ouvíamos os gritos das pessoas quando lhes era anunciado que iam ser retornadas para Espanha. Eram de arrepiar. Foi uma guerra extraordinariamente má e dura. Até as próprias autoridades vinham buscar café à fábrica e levavam para ganhar mais algum e reforçar o salário, que na altura era miserável.
Sempre houve uma certa ambição na sua família? O seu pai quis ser mais do que camponês... 
O meu pai sempre foi muito conservador, respeitando a pessoa que lhe arranjou trabalho e o patrão, ficando sempre a seu lado. O meu tio Joaquim sempre disse que não ia trabalhar para o campo e aos 13 anos já estava fora de casa dos pais. Correu Espanha e nunca fez outra coisa senão trabalhar para ele próprio, a transportar café. Era um homem de confiança na fronteira e conhecia bem os seus meandros.
Porque é que não fala em contrabando? 
Falo, é uma coisa sobre a qual não tenho qualquer problema. O nosso contrabando foi sempre um contrabando de força, de tapar buracos. Trabalhámos sempre a vender café para os espanhóis.
Legal e menos legal... 
Eles é que encaravam o que era legal ou não, o que interessava a um governo e a outro, dado que os espanhóis precisavam de um produto que não tinham. Não precisavam de divisas, trocavam-nas pelo café e deixavam cá pesetas. Era um negócio que aqui se fez em contrabando. Na altura, houve problemas com trocas de lã, tecidos, um pouco com o tabaco. Em Campo Maior, as pessoas mexiam era com o café: arranjavam o seu saquinho, punham-no às costas e marchavam...
Uma vila de contrabandistas... [risos]
Sem dúvida. E foi isso que nos deu alguma identidade. Depois conseguimos que fosse um produto fabricado em Campo Maior, porque esse meu tio o que levava para Espanha era café verde.
Porque é que Espanha precisava de café? 
Nessa época, as colónias deles não o tinham. Levavam daqui o café verde, que vinha de Angola, Timor, São Tomé e Cabo Verde, para as fábricas de Madrid. O meu tio levava o café dentro do carro e depois passava a fronteira a salto.
Nunca o mandaram parar? 
Não. O meu tio levava um saco de 30 quilos de café às costas e passava. Eu já fui mais felizardo, tinha uma técnica diferente, mais conhecedora. Ainda bem que existiu contrabando em Campo Maior, porque quando interessava aos dois países, acertavam-se e deixavam os contrabandistas passar a fronteira livremente. Quando havia pouco trabalho, lá e cá, levar café para Espanha era uma profissão. As pessoas capazes e sérias neste negócio eram conhecidas das próprias autoridades e, se tivesse de ser, até serviam para transportar qualquer coisa no plano diplomático. O café foi a arma aqui da nossa terra. Foi por isso que o meu tio percebeu que podia montar uma fábrica. Um dia, trouxe de Madrid um encarregado de uma torrefação que costumava visitar.
A primeira fábrica foi construída por um espanhol?
Foi construída pelo meu tio mas com a ajuda de um espanhol, com o know how dele. Chamava-se Nicolás. Começou numa tasquinha, dentro de um quintalzinho no meio da vila.
Às escondidas? 
Não, estava tudo legalizado. Já havia zonas industriais. Começou por ser pequena, mais ou menos artesanal, passou por várias fases e tamanhos e ainda hoje tem pessoas a trabalhar.
Começou com a marca Camelo.
A primeira marca foi a Cubana. O meu tio Joaquim trouxe a ideia de Espanha. Depois, outro tio, João — que gostava muito de imitar e lutar com o irmão — criou a Cubano, que ainda existe. A Cubana foi perseguida pela [Inspeção das] Atividades Económicas e vendeu a marca, mas nós já tínhamos a Camelo na retaguarda. A Cubana entretanto abriu falência, mas já tenho essa marca em meu poder, para matar saudades e em homenagem ao meu tio Joaquim. Ainda não está a ser comercializada, mas vai ser.
Porquê o nome Camelo? 
O meu tio era um homem de grande risco e fez a Camelo olhando um pouco para o tabaco Camel. A Camelo ainda hoje é quase uma fotografia da Camel. Houve alguns problemas com a companhia, a Philip Morris, mas conseguimos fazer um acordo entre as partes, garantindo que só fazíamos café. A Cubano nasceu assim de dois irmãos: um que já tinha a indústria de café e fazia o tal contrabando; o outro, que era guarda-fiscal e deixou de o ser e foi fazer o Cubano para atacar o irmão, que estava a viver melhor do que ele. Foi uma concorrência familiar, agressiva, mas a providência é grande. A Cubana trabalhava mais a parte norte de Espanha, de Cáceres até Salamanca; a Camelo estava mais pela Estremadura; e o Cubano, quando se infiltrou, foi mais para a zona de Cáceres.
Nessa altura a maior parte do mercado era Espanha. 
Era a cem por cento. Vivíamos somente para o mercado espanhol. Eu até estava interessado no mercado interno, mas o meu comando ainda não era suficientemente forte para o poder impor.
Quando começou a interessar-se pelo mercado português? 
Em 1961, quando arranquei e criei a Delta. Comecei com três empregados, mas continuei a trabalhar para a Camelo: levantava-me às 3h30 da manhã e ia para lá. Os três empregados eram reformados, dois da GNR e um da Guarda Fiscal. Um era familiar, outro conhecido e o terceiro vizinho; pagava-lhes pouco porque tinha pouco e eles também ganhavam da reforma.
Porquê Delta? 
Nessa altura as marcas e patentes já eram reguladas pelas empresas e agências ligadas à propriedade industrial. Pedi para nos arranjarem uma marca para registar. Os senhores da J. E. Dias Costa, uma firma de patentes e marcas, deram-nos duas ou três referências. Uma delas era Delta, que tem uma acústica boa e uma expressão natural. Qualquer pessoa o diz, até os chineses.
Não é uma criação sua. 
É, porque a soube trabalhar e orientar. Soube esperar, não tinha pressa. E já tinha um salário na Camelo, que era a minha segurança — não precisava de estar a correr para vender e ter o meu dia a dia seguro.
Quanto era?
Chegou a ser mil e quinhentos escudos. Ao pé de quem ganhava 500 já era muito bom.
E agora? 
São dez mil euros, mas com o que o Governo leva, a parcela fica quase a metade [risos].
Arrancou com que dinheiro? 
Tinha uns depósitos a prazo de um ano e fui a um banco de Elvas, Francisco da Silva Brás, uma pequena casa bancária e de câmbios, que me antecipou 50% sem ter prejuízo. Ainda fiz um empréstimo no Banco Nacional Ultramarino. Comecei assim a minha vida com empréstimos e dinheiro meu, jogando as coisas muito certinhas.
A matéria-prima ia buscá-la a Angola? 
Sim, sobretudo a Angola.
Agora, aonde é que vai buscar o melhor café? 
A vários países. Ao Brasil, Guatemala, Costa Rica, Colômbia, Uganda, Camarões, Costa do Marfim. Angola, hoje em dia, produz pouco ou quase nada. Era o segundo maior produtor e hoje quase não aparece nas estatísticas, é zero. Importamos desses países todos.
Daí que veja, todos os dias, as cotações da bolsa? 
A várias horas do dia. Logo que chego ao escritório é a primeira coisa que faço. Acompanhei sempre o mercado. Fui buscar café a Angola na altura certa. Quando houve condicionamento eu tinha o armazém cheio. Depois da revolução, fui outra vez a Angola e trouxe todo o café que podia comprar. Foi essa a minha audácia. Não tive dificuldades em ir para a frente de batalha. Em 1975, quando estava tudo a vir para Portugal, não mandei ir outros — fui para lá eu. Passei dificuldades, queríamos comer e não havia...
Como é que o receberam? 
Bem, porque sempre tratei bem as pessoas. Dormi muitas vezes em fazendas de café, sempre ao pé da rapaziada toda. Isso conta bastante. Antes do 25 de Abril não nos era permitido fazer importação direta, porque havia uma cooperativa e estava tudo controlado por um grupo.
Que grupo era? 
Era uma cooperativa criada pela maior parte dos fazendeiros, a Copeca. Na altura eu já vinha a dar passos. Essa gente grande, que tinha grande marcas, dizia: “O Nabeiro está a vender umas coisas, mas não vale nada, é um alentejano...” Quando deram conta, já eu estava à frente deles. A certa altura eu tinha produto e eles não, e todos me queriam comprar, proporcionando-me um lucro bastante razoável. Respondia-lhes: “Não, eu posso dispensar um saco ou outro, mas não vendo. Vender, vendo as minhas embalagens, para fazer a minha marca”. E consegui. Os principais concorrentes eram a Chave d’Ouro, a Nicola, A Caféeira, a Sical, A Brasileira...
Nada disso existe... 
Nada. A Nestlé comprou a Tofa, a Sical e outra do norte. Duas outras financeiras têm a Chave d’Ouro, a Nicola e mais três ou quatro empresas do norte.
Vocês foram uns resistentes, que não foram comprados… 
Fomos nós e, no Porto, a Torrié.

Bolsa. 
Todos os dias, Rui Nabeiro consulta, no telemóvel 
e no iPad, as cotações internacionais do café. Foto: NUNO BOTELHO
Também apostou em Timor depois da independência. 
O jornalista da “Visão”, quando me viu lá, até me disse: “Pensava que era o primeiro a chegar mas o senhor já cá está”. Um moço que trabalhou no BNU, em Campo Maior, telefonou-me uma noite, já tarde. Tinha saído de uma reunião com o Xanana Gusmão e disse-me que ele tinha café, queria vendê-lo, mas não sabia como. Pedi-lhe umas amostras, mas ele não tinha condições para as fazer sair. “Então vou eu aí”, respondi. Falei a quatro ou cinco empregados e chegámos uns dias antes do Carnaval. Em Díli estava tudo a deitar fumo. Eu e o Xanana pisámos pelo ar Timor completo, fizemos reuniões por todo o lado, em zonas de cooperativa e aglomerados de gente, fazíamos um discurso ‘esperançativo’.
Comprou o café a um preço muito generoso... 
Comprei. É pena que seja longe.
Mas as coisas não correram bem... 
Não, porque logo ao primeiro desequilíbrio foi tudo assaltado e maltratado. Depois da independência, quando o Ramos-Horta era ministro dos Negócios Estrangeiros, levámo-lo a duas feiras, a Barcelona e Paris, para promover o café. Apliquei-me com emoção.
Onde é que estava no 25 de Abril? 
Em Campo Maior, era uma terra “agressiva”, toda a gente era trabalhadora do campo e dentro das pessoas havia uma intranquilidade e revolta. Havia muita gente voltada para o comunismo, mas também muitos socialistas. Fui para a rua com as outras pessoas. Caminhei, gritei e fizemos a nossa marcha.
Alguma vez esteve ligado à oposição? 
Não. Como campo-maiorense e homem nascido na humildade, fui o que nunca ninguém na terra tinha sido, a não ser os homens ricos: presidente de Câmara, em 1962 e 1972. Numa altura vim-me embora, na outra mostraram-me a porta.
Presidente de Câmara, mas nomeado! 
Nomeado, claro, na altura não havia eleições. Nomeado e posto na rua da primeira vez, porque eles queriam que eu trabalhasse devagar e eu trabalhava mais à pressa. Na segunda fui eu que me vim embora. Fui convidado por um senhor que vinha da Assembleia Nacional; era de Trás-os-Montes (Vila Real) e ouvira falar de mim. Fui para a presidência da Câmara em fevereiro de 1972 e saí em setembro. Quando se fizeram as Festas do Povo, lançadas por mim, consegui que o Marcello Caetano me recebesse em São Bento, através dos homens da Câmara Corporativa que também trabalhavam no café. Mas o Marcello entretanto foi ao Brasil e não pôde vir. O governador civil não sabia de nada e quando se apercebeu de que o Marcello esteve quase para vir a Campo Maior, passou a perseguir-me e fui-me embora. Logo a seguir ao 25 de Abril fui nomeado para fazer parte da comissão administrativa da Câmara.
Era socialista na altura? 
Nasci socialista.
Quando é que ganhou consciência política? 
O meu pai era um homem que trabalhava tudo e não ganhava nada — e queria que houvesse mudança. Não digo que fosse socialista, mas ouvia-o dizer à minha mãe que não tinha visto os filhos naquele mês, e que estava cansado de ficar em casa com aquele senhor com problemas psiquiátricos. Isto era uma terra muito pobre, tão pobre como qualquer terra do Alentejo. É daí que sou socialista.
Quando aderiu ao PS? 
Logo após o 25 de Abril.
Porque escolheu o PS e não o PCP?
Eu defendia mais o ideal do PS do que do PC. Mas no PC também tenho amigos. Na primeira festa do “Avante!” o meu produto também lá estava. Eu sinto quem está carente, tenho dor de quem sofre na saúde e nos custos. Vivo para fazer o melhor e isso dá-me uma leitura de esquerda. Há pessoas boas na direita? Há. Mas eu vim para o PS, estou no PS e jamais pensei sair.
Quem foi a primeira pessoa importante que recebeu na Câmara? 
O pai do Marcelo Rebelo de Sousa, o Baltasar Rebelo de Sousa, quando era ministro das Corporações. Depois recebi muita gente, mas nessa altura não era fácil. Trazer um governador civil era um achado. Quem veio cá muitas vezes foi o Álvaro Cunhal. Não o recebi, mas esteve cá.
E Mário Soares? 
Logo após o 25 de Abril. Em 1976 fez-se uma reunião aqui em Campo Maior entre ele e Felipe González [líder socialista espanhol]. Fui um pouco o anfitrião, porque tínhamos uma cooperativa, Progresso Campo-Maiorense, onde moravam os trabalhadores agrícolas ligados ao PS. Nas instalações dessa cooperativa, que era um lagar, fizemos a receção, o convívio e almoço. Já tinha havido eleições locais e eu era o presidente da Câmara.
Foi no tempo de Mário Soares que teve um problema com o fisco e até um mandado de captura. Esteve uns anos fora, em Badajoz. 
Anos não, meses. São coisas que acontecem na vida das pessoas. Até desmontar todo um sistema foi difícil e levou tempo.
Como é se sente um industrial, um homem do café como gosta de se definir, com um mandado de captura? Ainda por cima quando o Presidente da República era seu camarada... 
O camarada a mim não me podia dizer se estava bem ou mal. Soube reagir às circunstâncias. A razão estava deste lado e as coisas depois correram com a maior normalidade. Logo que passou o prazo, entrei como tinha de entrar e tive a adesão de toda a gente e de todo o povo. Se fosse acusado, teria de ser julgado — e nunca fui a tribunal.
Pagou alguma coima? 
Não.
Tratou-se de um equívoco, de uma perseguição? 
Já passou tanto tempo...
Por isso pode falar à vontade. 
Há coisas que tenho dificuldade em comentar. A minha intenção foi servir, não foi servir-me a mim. Acho que não me acusaram porque viram que não havia material para me acusar, e a coisa acabou aí. Não deixei de fazer a minha vida normal, aqui ao lado, e as pessoas sabiam-no. A nossa empresa trabalhou normalmente e cresceu.
Vinha a Campo Maior de vez em quando? 
Não. Sou muito respeitador das circunstâncias, da verdade e do caminho. Não é que não tivesse condições para cá vir, porque quem conhece a fronteira e as pessoas, como eu conhecia, não teria dificuldade. Mas não o faria nunca.
Acha que foi um erro por parte da justiça e do fisco? 
Já o interpretei na altura e acho que não o devo fazer novamente. Sou uma pessoa feliz, sinto-me bem com a minha consciência, diária e permanentemente. Quero continuar assim. Só essa minha atitude, de saber viver e estar com as pessoas e os amigos, me deu uma tranquilidade total.
A Nestlé tentou comprar o seu grupo várias vezes. Nunca pensou nessa hipótese? 
Estava e estou mais do que comprometido com a sociedade em geral. Temos um percurso de vida no âmbito social elevadíssimo e nunca poderia vender. Mas não foi só a Nestlé que apareceu.
Quem mais? 
Por exemplo, a Philip Morris, a Kraft, a Pepsi.
Alguma vez pensou em transformar a empresa numa sociedade por ações? 
Não. Mas não sei se é falta de arte ou falta de querer. Nunca pensei e nunca o discutimos porque a família sabe bem qual é a minha orientação. É possível que quem é mais jovem e tenha mais preparação académica possa pensar num cenário diferente.
Os filhos e netos herdaram o seu modelo de gestão? 
Ainda não morri, só nesse dia é que herdam. Ou concordam ou respeitam, não estou dentro deles.
Tem receio de que queiram mudar a filosofia da Delta? 
Não. Tenho o filho, a filha, os netos, e há um respeito por aquilo que se tem feito, pelo trabalho e luta. Eles têm orgulho. Não é por a pessoa ir-se embora que se mudam as coisas.
Tem a noção deque tem empregados a mais para aquilo que necessitaria? 
É natural que sim. Mas até hoje também não tive dificuldades em lhes pagar, e isso é uma grande vantagem.
Encara isso como uma responsabilidade social? 
Encaro, porque, no regresso, quem semeia colhe e quem distribui recebe. E eu faço muito isso.
Estes últimos quatro anos foram difíceis e nunca despediu ninguém. Pelo contrário, até aumentou salários. 
Foram anos mais trabalhosos. Na nossa casa, o termo crise não tinha lugar. Mesmo em reuniões. Falávamos, sim, em como íamos trabalhar melhor.
Assustou-se com o sucesso das cápsulas Nespresso? 
Não. A Nestlé trouxe as cápsulas mas nós criámos a nossa própria cápsula e mais ninguém em Portugal, mesmo multinacionais, tem uma com tanta força.
Em sua casa usam cápsulas? 
Não, mas no escritório já usamos.
Qual é o café que bebe em casa? 
Usamos o Delta Diamante, moído numa máquina na altura. Para mim, é o melhor.
Quantos cafés toma por dia? 
Quatro é garantido. Bebo ao jantar e não me tira o sono, até me dá.
A revista “Exame” colocou-o como o 12º empresário mais rico do país. Onde é que tem os 400 milhões de euros que lhe atribuem? 
Eu trabalho para a empresa e a empresa trabalha para mim. As nossas máquinas, os nossos departamentos são pagos com o dinheiro da empresa, isso representa um património beneficiado e calculado através das nossas contas. Às vezes começo a rir, porque no dia a dia só preciso de ter o que tenho aqui no bolso, sempre aqui no bolso direito e todo contado.
E é quanto? 
Duzentos euros. Dá para muitos dias. Se vou ao restaurante pago com o meu cartão, que é da empresa. Mas não vou a restaurantes assim de qualquer maneira. [No dia em que a entrevista foi feita, uma sexta-feira, ainda tinha 150 euros no bolso]
Ainda recorre à banca? 
Quando é necessário, sim. Agora, comprar coisas, com o dinheiro da banca para ter rendimento, nem pensar.
Reformar-se está nos seus planos? 
Reformar-me era uma grande desgraça para mim. Depois não tinha mais nada que fazer, morria mais depressa e eu quero viver mais anos. Quero sentir o palpitar do coração.
Passam a vida a pedir-lhe emprego... 
Ah, sim, valha-me Deus! Todos os dias.
Já alguma vez disse que não? 
Não posso dizer a todos que sim. Onde há esperança, também temos de dar esperança. Não digo a ninguém que não. Muitas vezes afirmo: “O lugar tu é que o vais conquistar” — e quem o quer conquistar tem de trabalhar para ele. Por isso é que digo que não é o dar, é o distribuir. Quando uma pessoa diz que não, também fica comprometida, um pouco menos saudável.


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