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CRÓNICA - O Senhor Jerónimo

Final de tarde soalheira, típica do início do Outono, numa agradável quinta de Turismo Rural, nas abas da Serra de São Mamede, perto da pitoresca Vila de Marvão. Numa pausa do repasto do casamento de uns amigos – o motivo para a estância naquele aprazível local -, à sombra de uma frondosa árvore, junto a uma bica de água, que corria fresca, de forma ocasional mantinha diálogo com um senhor. Pela sua aparência, com as marcas do tempo bem vincadas no rosto e nas mãos, certamente resultantes do árduo trabalho no campo, simpático, de trato simples, será septuagenário. O Senhor Jerónimo. A nossa conversa de ocasião versava sobre o tempo, o rigor do verão, a falta de água – curiosamente no dia seguinte até choveu bastante nesta zona -, e as consequências que daí advêm para os campos desta região alentejana, essencialmente agrícolas. A certa altura vem para junto de nós um meu amigo, de nacionalidade espanhola. Ao ouvir a língua castelhana, o senhor Jerónimo perguntou-me se o meu amigo era espanhol. Naturalmente fui o mediador para a apresentação mútua. O meu amigo apresentou-se em “portunhol” – uma mistura de português e espanhol -, dizendo o seu nome e a sua profissão, advogado. Foi aí que o senhor Jerónimo, com uma grande espontaneidade e, pela forma simples e humilde das suas palavras – posso garantir -, sem qualquer malícia, se voltou para o meu amigo e disse: “Ai o senhor é advogado… é daqueles que quando apanham um processo nos tiram a camisa e até às cuecas”. Não será difícil imaginar a reacção de surpresa e admiração com que ficámos, quando cruzámos o olhar. Mas tudo bem. Perante a simplicidade e humildade do senhor Jerónimo – provavelmente lesado por algum advogado -, e o meu amigo a dizer que não se podem julgar todas as pessoas da mesma maneira, prevaleceram os sorrisos e a conversa continuou. Este episódio, espontâneo e natural, acaba por reflectir um pouco o que se verifica na sociedade actual. Não quero aqui apontar o dedo ao senhor Jerónimo, nem defender o meu amigo advogado, a sua classe ou outra qualquer. Simplesmente registo que a juntar à crise económica e financeira, existe uma crise de valores, de valores morais, como a dignidade, o respeito, a tolerância, a honradez, a honestidade, a generosidade, entre outros, que se vão perdendo. A sociedade actual parece incapaz de enfrentar o problema. Instalou-se a ideia de que, numa democracia, cada um escolhe os seus valores. No entanto, viver em democracia pressupõe a aceitação de todos os valores, reconhecendo a todos eles igual consideração e respeito. Propiciadas pela globalização, as profundas alterações económicas, científicas e tecnológicas que a sociedade moderna tem conhecido, não apenas estimulam o abandono dos valores tradicionais, como parecem conduzir a humanidade para um vazio de valores. Seja como for, pela minha parte, os valores mantêm-se e serão respeitados e valorizados. E um desses valores, a amizade, irá manter-se em relação ao meu amigo advogado, na certeza de que o senhor Jerónimo será recordado sempre que nos encontrarmos.

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